29/06/2004, Jornal A Crítica
O 39º Festival Folclórico de Parintins (município a 325 quilômetros de Manaus) ficará marcado pela confusão na escolha dos jurados, o domínio de Calypso, forró, axé e o pagode sobre as belas toadas e, pior, o fracasso de público, estimado por comerciantes como sendo, pelo menos, 30% menor que no ano passado, quando o número de turistas já havia sido ruim.
Dona de uma barraca de churrasco há 14 festivais, Lúcia Rodriguez Vieira, 41, disse que a população de Parintins inteira tem de parar, refletir e tomar de volta as rédeas da festa dos bumbás. Desde que isso virou uma empresa - diz, esfregando a ponta do dedo polegar na ponta do indicador - começou o fracasso, analisa, referindo-se aos interesses financeiros da festa.
Lúcia defende que todas as pessoas ligadas ao boi deveriam voltar a trabalhar por amor a camisa, sem interesses imediatos. Todo mundo lá, desde o cara que escolhe as penas até quem dirige, só fazem as coisas por dinheiro, criticou.
A comerciante também critica a exploração dos turistas que vem a Ilha Tupinambarana fazendo grandes sacrifícios. Ela conta que os preços estão exorbitantes e um bom exemplo disso é a tarifa dos mototáxis, que salta para R$ 2 durante o festival, quando em outros períodos o preço tabela é de R$ 1. Estão explorando o turista e não o turismo, reclama, acrescentando que Governo do Estado e Prefeitura de Parintins deveriam intervir, estabelecendo uma tabela com preços justos.
Desânimo
Os problemas registrados neste festival acabaram contaminando o público que veio a Parintins. No bar do Chapão, por exemplo, o pequeno público presente ontem à tarde não causava o frisson de outros festivais. O visitante podia circular livremente por entre as ruas do entorno e quem estava de carro ou moto não teve problema para estacionar. Nunca vi o Chapão desse jeito, atesta a comerciante Jeane Lima Brelaz, 23.
Na outra ponta da Ilha, no bar Comunas, mesas desocupadas eram o reflexo do fracasso do festival, pois o local tornou-se um ponto de concentração de torcedores do bumbá Garantido desde do fechamento do Horroroso, bar que funcionava na praça do Cristo. Aqui o negócio degringolou, confirma Jerônimo Baraúna, 45, há 23 anos armando uma barraca para vender suco de guaraná.
Na Praça dos Bois, inaugurada no domingo, o público presente nas apresentações promovidas pela Secretaria de Estado da Cultura (SEC), desde às 10h, era mínimo e não empolgava os proprietários dos boxes instalados cada lado da praça.
Movimentado mesmo só a praça da igreja Nossa Senhora do Carmo e mesmo assim com bem menos visitantes do que em outros anos. Nessa altura do festival eu já teria vendido quase 300 caixas de cerveja, mas este ano ainda estou com o estoque lá em cima, disse Miguel Santos, 34. Para ele, o problema do festival vem se agravando desde 2000, quando ocorreu o único empate registrado na disputa entre Garantido e Caprichoso. O povo ficou velhaco, pensando que a disputa estava armada e a partira daí naturalmente se afastou.
Bumbás declaram amor a Ilha
Na segunda noite de apresentação do 39º Festival Folclórico de Parintins, o Caprichoso investiu no espetáculo folclórico voltado para as suas tradições culturais, revelando um mundo fantástico que envolve a cidade de Parintins, berço e palco da brincadeira. O momento folclórico batizado de Parintins de todos os tempos...Luz do folclore popular, representou diversos cenários parintinenses, como o templo da Catedral de Nossa Senhora do Carmo, o Lago da Valéria, a senhora de Parintins e a Vila Amazônia. Entre cordões de pássaros, surgiram quadrilhas juninas coloridas, fogueiras e bandeirolas. Neste momento foi homenageado o historiador Tonzinho Saunier e o boi surgiu como o guardião das tradições, completando a saudação ao parintinense.
O castanheiro foi a figura típica regional escolhida pelo bumbá para a segunda noite, cuja alegoria acabou por revelar a porta-estandarte Lucenize Coelho. A lenda da Amazônia mostrou a boiúna, cobra-grande, com uma mensagem atual, de lembrança e denúncia da contaminação dos rios pelo mercúrio, metal pesado usado por garimpeiros. A rainha do folclore, Daniela Alencar, surgiu como a filha da cobra-grande.
No grande momento da noite o Caprichoso apresentou o ritual xamanístico dos tupinambá, tribo já extinta no Brasil, uma recriação de um rito religioso que envolvia sacrifício humano. Nas guerras tribais, os tupinambás capturavam seus inimigos para depois servi-los em banquetes antropofágicos. No rito, o pajé Waldir Santana encarnou o karaía, o xamã que consagrou o ibirapema (instrumento que os índios usavam para matar seus inimigos).
A cunhã-poranga, Jeane Benoliel, que este ano faz sua despedida do boi, apareceu sendo libertada, pegando o sangue dos executados para passar no corpo de índias mães, para que estas pudessem alimentar seus filhos.
De um jeito diferente, o Caprichoso inovou na apresentação dos itens, que em momentos diversos exibiram personificações duplas, trocando as indumentárias. Foi uma noite de reverência ao povo brasileiro, dos seus costumes e crenças e identidade cultural.
Garantido
Defendendo o tema Parintins da Amazônia, o Garantido encerrou ontem a segunda noite do Festival. O espetáculo foi aberto com a encenação da Celebração Folclórica, um momento criado pelos artistas para destacar as figuras tradicionais do auto-do-boi, Mãe Catirina, Pai Francisco, o Boi de pano e a Vaqueirada. Uma alegoria de mais de 10 metros de altura que ocupava toda a largura do Bumbódromo destacou a figura do fundador do bumbá Lindolfo Monteverde, vaqueiros, a sinhazinha, caçadores, entidades místicas e o amo do boi.
Como Figura Típica Regional, o Garantido apresentou as crianças pescadoras de doações que vivem em comunidades localizadas no famoso estreito de Breves, município paraense onde a largura do rio Amazonas é uma das menores. No centro da alegoria estava um barco regional batizado de Comandante Raul Góes Filho, uma homenagem ao ex-presidente do bumbá falecido neste ano. O espetáculo finalizou com a apresentação do ritual Místico de Criação do Mundo Bara Maku.
A apresentação mostrou que os Bara-Maku, etnia habitante do rio Maku-Paraná, no município de São Gabriel da Cachoeira, acreditam em um Deus (Idn Kamni), que criou o mundo em três níveis: o superior, onde vivem o próprio Deus, personificado em um gavião gigante, e as aves predadoras. O segundo nível abriga os homens, os seres malévolos, feras aladas e devoradores. No último nível, o inferior, vivem lagaratos, cobras e seres do vale das sombras. Todos esses personagens apareceram na alegoria do ritual, de onde saiu o pajé André Nascimento para comandar a pajelança que livrou os Bara-Maku dos seres malévolos, banindo-os para o abismo sem fim.