29/08/2005, Jornal A Crítica
Apesar do adjetivo inserido em seu título, o Festival Folclórico de Parintins vai muito além do folclore. Desenvolvida com base em mitos amazônicos e tradições diversas, a grande festa da Ilha tupinambarana ao longo do tempo incorporou diversos elementos em sua realização e hoje se insere entre as manifestações artísticas pós-modernas. A idéia foi defendida este ano pela mineira Maria Helena Rodrigues Silva em sua dissertação de mestrado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "A concepção do folclore como coisa estática, de raízes mesmo, já fugiu muito das apresentações dos bumbás. Embora conserve elementos folclóricos, como o auto do boi e algumas apresentações de tribos, o festival já saiu da alçada do folclore para atingir novas dimensões", explica a pesquisadora, cujo trabalho é intitulado "Boi-bumbá de Parintins - Arte e significação". Também artista plástica, Maria Helena tomou contato com o boi-bumbá amazônico em 1997, quando assistiu aos ensaios dos bois de Manaus. "Me impressionou esse amor, esse apego que as pessoas tinham por um boi de pano e comecei a tentar entender a motivação delas". comenta a mineira, que iniciou a pesquisa de mestrado em 2002.
OITICICA E AMBIENTE
Maria Helena buscou conexões da festa de Parintins com elementos com os Parangolés criados pelo artista plástico neoconcretista Hélio Oiticica e a tendência de incorporar festas populares ao ambiente, com ideais de preservação. Na fase de coleta de dados, ela esteve em Parintins antes, durante e depois do festival. Acompanhou o dia-a-dia dos galpões, entrevistou populares, pesquisadores, jornalistas. e pessoas ligadas aos bumbás. "Toda a produção é elaborada em torno de mitos e lendas - que são arquétipos que a psicologia junguiana justifica - e tem conexões com o teatro grego antigo e com outros eventos ao longo da História", observa a pesquisadora, que aponta ainda a união das pessoas em torno de seus bois, a facilidade de criação e improvisação nos galpões e, o mais crucial, o significado emotivo para as pessoas.
"O amor e o significado que esse festival tem para as pessoas da região, essa felicidade, é muito difícil de encontrar em outro evento. Entre várias pessoas que estiveram ali pela primeira vez, de várias classes culturais, o sentimento é o mesmo", comenta ela. Tal sentimento, continua a pesquisadora, citando sua própria experiência, é algo de transcendente.
Lembrando uma fala do físico Marcelo Gleiser, Maria Helena comenta que, em pleno século 21, no silêncio de nossos escritórios, ao som dos nossos computadores, ainda podemos ouvir a voz dos nossos antepassados nos convidando a dançar. No festival, afirma ela, "você sente o chamado de nossos ancestrais, levando-nos para outras dimensões".
Fantasia não pode ser perdida
O boi-bumbá, na visão de Maria Helena Rodrigues, tem um caráter de renovação, apesar de conservar vários elementos de sua festa original, como os personagens do auto do boi. De acordo com a pesquisadora, tal caráter de mudança e renovação é próprio da cultura. "Nosso próprio viver representa mudanças. Vivemos perdendo e incorporando coisas".
Para a mineira, os realizadores do boi-bumbá precisam apenas ter precaução para não desvirtuar o sentido da manifestação popular. "É preciso ter cuidado com a introdução de novos elementos e, assim tentar, manter essa coisa linda, que nos leva a outras dimensões. É isso que faz com que as pessoas voltem - e você vai, mesmo com os preços não-convidativos, ou os alojamentos inadequados, para buscar aquela sensação", declara ela. "Se isso se perder, acaba o festival".