13/03/2005, Paulo Queiroz
Examinando a reação do caboclo, quando mordido diante de situações onde o classificam de índio, observei que a maioria não gosta de ser chamada de nativo (uma infeliz negação). Quando, por exemplo, um amazonense nato é agraciado com a rara chance de conhecer outros lugares tão lindos quanto o nosso, neste país afora, é que essa situação se evidencia. Quando, por aí, não deixamos evidentes os traços intrínsecos de tapuios autênticos que somos, pela nossa cara, pela nossa cor pardacenta e suada, pelo nosso sotaque inconfundível de ulha já! e, especialmente, pela nossa maneira de ser, as pessoas lá de fora acabam descobrindo que há um índio por perto. Quase não há como esconder isso.
Qual de nós que em alguma viagem para fora do Estado já não foi escarnecido por algum brazuca metido a caucasiano? Qual de nós já não foi indagado sobre nossa convivência diuturna com índios andando por aí pelas ruas de Manaus com a bunda de fora? Qual de nós já não foi perguntado sobre a forma heróica do caboclo matar onça na porrada? (até parece!)... Quem não foi? Você? Duvido! Tem amazonense que não suporta nem ser chamado de caboclo, pelos compatriotas, quanto mais de índio. Muitos de nós negamos nossa própria descendência; uma descendência maravilhosa de quem não tem medo de quase nada; de quem ensinou ao mundo as maneiras prodigiosas de sobreviver a partir do verde. Hoje, nos lugares mais requintados de Manaus, só se vê é caboclo tentando imitar paulistas, gaúchos e mineiros na maneira de falar, amiúde com uma vontade imensa de ter nascido loiro com a cara branca e os olhos azuis. Ah! Bicho besta esse caboclo!
Um dia, em Belo Horizonte, onde trabalhei por um tempo, tava batendo perna por um determinado shopping quando me aproximei de uma moça que cresceu junto comigo lá em Tefé, no interior; nos reconhecemos em meio à multidão em polvorosa. A menina até que tinha progredido pra caramba; era um pouco feinha. Ela tinha umas orelhonas meio que de doutor Spock e umas perninhas de maçarico. Fiquei surpreso com a beleza encantadora da ex-nativa. Linda ela tinha ficado, sabe-se lá como! (um feliz processo natural). Pois bem, pra meu espanto, quando a escutei falar fiquei estarrecido com a boçalidade da cunhantã. Quando se pronunciava ela chiava mais do que rádio estático e panela de pressão; esforçava-se laboriosamente para imitar os gaúchos nos trejeitos da falança, e já que havia passado uns anos em Porto Alegre, estudando, ela achou por bem impregnar a forma de vida dos pampas, em detrimento dos nossos hábitos. Minha nossa!!! Achei aquilo patético (pra não dizer ridículo); fiquei até com dó da caboclinha. Considerei, naquela hora, uma lástima que muitas de nossas índias não sejam mais que nem a notável Lucinha Cabral, uma genuína caboquinha.
Infelizmente, o desmerecimento e a vergonha não são privilégios só dos amazonenses, não. Conheço uma penca de nordestinos, por exemplo, que nasceram lá no meio das xerófilas vegetações de secura, e que deixaram seu ó xenti, minino! na galeria do esquecimento regional; e só porque muitos moraram -- ou moram - há alguns anos nas banda culturais sulistas, empregam uma diligência desmedida para imitar o povo dessa região. Uma burlesca atitude digna de francas gargalhadas. Risível tudo isso! Ah, bichos bestas estes jagunços alienados!
Aos caboclos -- sem querer extrapolar no regionalismo, sem querer ser exclusivista, e sem querer contender com ninguém, eu digo que não deixo essa gleba por nada nesse mundo. Por que sair daqui para sempre? Por que abandonar o chão em busca do nada lá fora? Será que a nossa mãe amazônica não sabe mais ensinar a viver? Claro que sabe! Ela ensina e muito bem! Até os arianos etnocêntricos quando experimentam a nossa gleba, e dela depois tentam apartar, não suportam a saudade e voltam com o canto do olho espichado pra viver o resto de seus dias aqui. O Amazonas não é apenas um mundo verde avançado, não! É um celeiro de artistas talentosos... de mulheres lindas e apaixonantes. É um lugar de gente pacífica e hospitaleira... Essa terra é um paraíso que todos os dias rasga as alvoradas gargalhando de felicidade pela vida e pela paz que aqui se encerram e, quando sorri, deixa abatido o cenário das falácias, tornando mais peculiares ainda os desprezíveis procedimentos dos que são preconceituosos e que deformam a mentalidade humana. E aos que acham que somos, tão-só, míseros selvagens que perambulam com a bunda de fora pelas ruas da Manô, eu vaticino: quem nos dera tivéssemos a constância da convivência direta com nossos irmãos índios; de podermos desfrutar e apreciar seus rituais seculares, e de podermos provar de sua culinária com freqüência. Quem dera! Mal sabem os asnáticos desinformados -- ainda bem que não são todos -- que programa de índio não é pra qualquer um, não! Até nisso os nossos índios amazonenses são boçais. Para nosso consolo, temos a nós mesmos; nós, os já modificados índios amazônicos, e mesmo que queiramos esconder esse precedente histórico-genético, nada mudará o nosso destino.
Somos caboclos índios de verdade, daqui do Amazonas, que é uma arena de encantos, onde a noite açoita o céu em negrume e mistério fazendo a gente chorar de emoção; donde o sol, que é o senhor de todos os fogos e o provedor do arretamento da cabocada, com seus raios flamejantes lambe a pele mais ou menos clara de quem nasce aqui, enegrecendo-a encantadoramente num bronze inebriante.
Quem trata a nossa gente com zombaria -- incluo aqui os próprios caboclos bestas nativos -- precisa deixar o cativeiro da imbecilidade e romper o casulo da ignorância... Aquele que aqui ganhou vida e um dia partiu sem decoro, deixando sua Mãe-Terra em lágrimas leitosas de vergonha, precisa nascer de novo nessa terra e rebuscar as belezas que pertencem a este rincão; precisa rebuscar o sabor das correntezas, das lapadas do banzeiro, do rebojo engolidor, do caldo quente, da paixão, do amor... Os que aqui vivem, portanto -- e aqui amam --, jamais devem se pôr em fuga ou se deixarem fazer reféns de fantasias alheias.
Ei! Caboclo! Não foge, não! Fica aí e desperta desse sono besta, seu bicho leso! Não desprezes a tua terra, objeto de tua estimação! Não te bandeies para conhecer as dores do mundo! Acorda para a vida amazônica e para as nossas inesgotáveis fontes de encantos, sob pena de tu provares do pão que o diabo amassa para ofertar aos tolos, aos seduzidos por encantos falsos daqueles que se julgam superiores. Não adianta quereres tu tão-somente correr mundo, ainda mais sabendo que a tua alma não é livre, pois o teu corpo é que manda nela, e este - o teu corpo -- já está prometido à tua Terra-Mãe! Fique, caboclo! Não fujas! Senão, os escarnecedores te dirão: caboclo é bicho besta mesmo!