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Eram os deuses astronautas?

25/04/2005, Flávio de Oliveira, de Brasília-DF, é colaborador deste site

No princípio do mundo existia exclusivamente Mavutsinim, que vivia sozinho na região onde transcorreu a gênese e os tempos primitivos do mundo, exatamente ali na convergência dos rios Ronuro, Batovi e Kuluene, de acordo com a mitologia dos povos do Alto Xingu, Estado de Mato Grosso.

Então Mavutsinim cansou de desfrutar sozinho do paraíso. Daí resolveu extrair uma mulher de uma concha colhida ao acaso na margem da lagoa. Acasalou-se imediatamente com essa mulher e tiveram um filho. Quando a criança nasceu, Mavutsinim apoderou-se dela e embrenhou-se na floresta, de onde não mais retornou. A mãe da criança caminhou a esmo por vários dias e foi prostrar-se nas imediações da lagoa, tendo carcomido o coração pelo horror traumático da separação. Diante de tanto sofrimento, Tupã compadeceu-se dela e permitiu que voltasse à condição de concha.

Em outra versão, foi Mavutsinim quem tudo criou; fez as primeiras panelas de barro e as primeiras armas; a borduna, o arco preto, o arco branco e a espingarda. Tomando quatro pedaços de troncos de árvore sagrada, criou as tribos Kamayurá, Kuikuro, Waurá e Txucarramãe.

Um dia Mavutsinim entrou na floresta, derrubou três árvores de madeira kuarup, carregou os troncos para a aldeia e decorou-os com pigmentos coloridos, penachos, colares, fios de algodão e braçadeiras de penas de arara. Terminada a obra, Mavutsinim fincou os troncos paramentados no terreiro da aldeia e convocou um casal de sapos cururus juntamente com outro casal de cutias para cantar em coral perto dos kuarup, com a finalidade de apressar a incorporação dos mortos naqueles troncos. Os homens da aldeia duvidavam que tronco de árvore virasse gente. Porém, Mavutsinim afiançava que os kuarup se transformariam em gente, andariam como gente e viveriam como gente. A pajelança demorou demais para fazer efeito e os índios ficaram mais descrentes. Mavutsinim impedia que os índios vissem a os kuarup se transformando em gente. "- Ninguém pode olhar ainda", dizia ele a todo momento. Os índios faziam pressão para presenciar a transformação dos kuarup. Eles queriam "ver para crer". Então o pajé decidiu que os índios que estivessem puros, ou seja, aqueles que não tivessem relação sexual naquela noite seriam autorizados a ver os kuarup ao raiar do dia. O único casal da tribo que fizera sexo foi impedido de sair da palhoça. No entanto, devido a excesso de curiosidade, a mulher resolveu sair sem autorização para uma espiada nos kuarup. Na mesma hora que a mulher olhou os kuarup, os troncos que se mexiam feito gente interromperam o esforço e voltaram à inerte condição de madeira. Mavutsinim ficou uma fera com a curiosidade doentia daquela mulher. E disse: " – Eu queria fazer os mortos viverem de novo. Se essa mulher que deitou com homem não tivesse aparecido, os kuarup teriam virado gente, os mortos teriam voltado a viver. Por causa dela, os mortos nunca mais voltarão. De agora em diante kuarup vai ser só festa".

Também a partir de tronco de árvore, Mavutsinim criou a mulher que deu a luz a um casal de gêmeos: Kuat (o sol) e Yaê (a lua) que, antes de se tornarem corpos celestes, foram responsáveis por eventos cruciais na formação do povo xinguano. Em outra ocasião, quem sabe, relatarei o papo "k-beça" de Kuat e Yaê, no banzeiro do ritual vermelhusco "Amazônia - vivo que é bom", com patrocínio da Coca-Cola/NBT.

Hoje quero reportar-me à lenda ou ritual "Amazônia Celular - Eram os Deuses Astronautas?", encenado pelo Garantido na primeira noite do Festival 2004, que trouxe Mavutsinim caracterizado de astronauta, quero dizer, um homem primitivo vestido de astronauta e voando no paraíso como se estivesse fora da órbita terrestre.

Já viram que nenhuma parte da mitologia xinguana retrata Mavutsinim como divindade astronáutica. Por isso, até hoje a galera vermelho e branco não sabe dizer se aquela ruidosa avalanche pirotécnica tratava-se de "um pajé que era astronauta" ou "um astronauta que é pajé". Israel Paulain bem poderia ter atiçado ao microfone: " - Isso é criação do Garantido, galera!"

No atual Parque Indígena do Xingu, ainda mais na época da criação do mundo, os homens xinguanos recusam vestir paletó e gravata, bem assim capacete de motoboy. Usam trajes naturistas por comodidade, inclusive para possibilitar o refrescante banho comunitário de igarapé. Embora familiarizados com essa realidade, os jurados matogrossenses não se abismaram de ver o pajé do Garantido com botas e capacete de astronauta, voando por sobre a aldeia numa barulheira apocalíptica, queimando o rico combustível dos foguetes da Agência Espacial Norte-Americana - NASA.

O júri deu nota 10 sem notar que o vôo original de Mavutsinim fora exibido anos atrás na Sapucaí. Aprovou o kuarup cibernético sem determinar qual dos pajés estava em julgamento naquele momento: se André Nascimento, que se achava no chão da arena; se o dublê norte-americano Eric Scott, evoluindo nos céus do bumbódromo. Estima-se que o caixa milionário do patrocinador tenha espichado cerca de US$145 mil pela "evolução" do gringo.

A primeira vez que se viu Eric Scott exibindo artes de homem voador foi no desfile da Acadêmicos do Grande Rio, carnaval de 2001. A televisão estampou via Embratel a multidão embasbacada diante da proeza tecnológica da NASA em pleno sambódromo.

O sucesso foi tanto que, em 2002, a escola de samba da Baixada trouxe o gringo voador para uma reprise na Sapucaí, fazendo-o bater asas caracterizado de psitacídeo, posto que o enredo intitulava-se "Papagaios amarelos nas terras do Maranhão".

Tudo a ver. Afinal de contas, Joãosinho Trinta situou o cosmonauta no tempo histórico do Terceiro Milênio, em plena Era de Aquário, onde é factível avanço tecnológico capaz de colocar o homem no espaço sideral. Ao passo que o Garantido meteu o pé na graviola: entronizou o funcionário da NASA como chefe espiritual de indígenas do Alto Xingu. Nada a ver.

É gostoso apreciar o Garantido plagiando artimanhas de Joãosinho Trinta, de 2001 e 2002, para conseguir estampar no bumbódromo os impulsos eletrônicos de "Amazônia Celular" naquele Festival de Parintins 2004.

O touro branco não sofreu prejuízo por exagerar da licença poética. Pelo contrário, em vez de perder pontos por sua concepção a-histórica do Xingu, abiscoitou bônus adicional. O Garantido entremeou o pajé astronauta na cerimônia de kuarup de forma tão convincente que os jurados engoliram a pajelança sem pestanejar. Moral da história: ganhar o Festival é questão de convicção.

O passeio aéreo de Eric Scott, pajé número dois do Garantido realmente não teve nexo com o ritual que se desenrolava na arena, onde André Nascimento, o pajé número um, ficou estatelado no meio dos kuarup, talvez preocupado com o risco de morte imposto a centenas de torcedores, caso o gringo apertasse errado algum botão no painel de seu vistoso veículo espacial.

Essa é a história da primeira vez em que o Festival viu pajés em duplicata na arena do bumbódromo. Os jurados tinham obrigação de saber que o regulamento prevê exibição de apenas um pajé, mas fecharam os olhos, e o Caprichoso foi garfado pela undécima vez.

Imaginava-se que a grande quantidade de bombeiros fardados de vermelho presentes no bumbódromo era prevenção contra o arriscado vôo de Mavutsinim, sem nenhuma relação com a proverbial periculosidade das alegorias da Fabril. Porém, o sinistro atingiu o gigante Juma, e não o tampinha Mavutsinim. Diz a sabedoria popular que, "dos males, o menor".

O touro preto tem tradição no campo da inventividade artística, mas invariavelmente é incompreendido por má vontade dos jurados. Acusam-no injustamente de plagiar escolas de samba, quando está comprovado que é o contrário. De uma coisa tenho certeza: caso apresentasse o pajé pilotando veículo aeroespacial durante cerimônia tribal, o Caprichoso seria imediatamente punido com expressiva perda de pontos.

E digo mais: se o Caprichoso ousasse pagar US$145 mil de combustível para fazer voar o pajé Valdir Santana, nunca mais voltaria a ser reconhecido como "Boi do Povão". A partir de então, dado o esbanjamento de milhares de dólares, o touro preto passaria a ostentar com justiça o cognome de "Boi da Elite".

Na intenção de demonstrar o inesgotável fair-play da galera azulante, registro aqui meus respeitos ao Garantido pela conquista em 2004 e felicito a Diretoria pelo sucesso do lançamento do Folclore TechnoPop da Baixa, tendo por mascote o pajé cibernético Eric Scott. Penso que, depois disso, a Baixa do São José pode assumir "sem medo de ser feliz" a sua notória vocação para o Carnaval e quitar os royalties devidos à determinada escola de samba da Baixada Fluminense por direitos autorais.


Veja também o artigo Olha repetição aí, gente!, de Flávio de Oliveira.


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