25/05/2006, Peta Cid, direto de Parintins
Tudo começou à luz das lamparinas, nas ruas de Parintins. O Festival Folclórico que a cada ano ganha sofisticação com recursos de iluminação e efeitos visuais cada vez mais ousados, tem uma história de saudosismo, do tempo em que o boi brincava nas casas, iluminado por lamparinas confeccionadas em lata ou bambu, como uma espécie de tambor com seis bicos, pavio de tamanho regular e um cabo encaixado em uma vara de um metro e meio para iluminar o terreiro onde dançava o boi-bumbá.
O senhor Raimundo Florêncio tem 103 anos e brincou no boi levando a lamparina
As lembranças ainda estão bem vivas para Raimundo Florêncio de Souza, que aos 103 anos consegue contar as muitas façanhas da brincadeira do Caprichoso pelas ruas de Parintins. Da mesma forma, com riqueza de detalhes, o brincante do Garantido, José Tavares, o Zé Foguete, hoje com 79 anos, relembra o tempo das lamparinas. Apesar de contrários, Raimundo Florêncio e Zé Foguete tem a mesma opinião: é preciso resgatar a memória, documentar histórias daqueles que companharam a evolução da festa.
O boi hoje é rico, mas deixou de ser bonito, diz Zé Foguete. Naquele tempo é que era boi de verdade, retruca Raimundo Florêncio, exibindo uma antiga poronga. Integrante assíduo da Marujada de Guerra, seu Raimundo brinca boi desde os 10 anos e diz que foi a pedido de pai e mãe. A primeira vez que brinquei foi carregando a poronga pela rua com o finado Lioca e um rapaz de nome Pedro. Onde tinha fogueira, lá a gente parava, relembra. Não havia luz elétrica na cidade, apenas dois faróis, um nas proximidades do cais e outro na área do antigo mercado. Raimundo Florêncio conta que as vestimentas dos brincantes eram de folha de bananeira e penas pássaros. A marujada vestia calça branca e camisa azul. Onde se encontravam, os bois botavam versos de desafio. O que parasse de pôr versos era porque não tinha mais nenhum, então saía fora. A gente dizia que aquele tinha perdido, afirma, contando que assim era a disputa. Ele lembra de um encontro entre Caprichoso e Garantido em frente à antiga matriz, hoje igreja do Sagrado Coração de Jesus. Os bois tinham dançado na casa de um abastado chamado Cardoso. Lá pelas tantas, os dois se enfrentaram e o Garantido quebrou o chifre. O finado Baladeira, que era a alma do Caprichoso, saiu com essa: Eu peguei uma navalhada/de susto peguei uma queda/ Apresento o Caprichoso/ Ele verga, mas não quebra/ Agora que eu vou contar, o que aconteceu/ Na frente do Cardoso/ Garantido esmoreceu, canta, dando risadas do boi contrário.
O senhor Zé foguete, do Garantido, tem muitas histórias pra contar
O crescimento do boi-bumbá foi quase inusitado e com ele evoluíram também as novas técnicas de encenação que enchem os olhos dos visitantes. Mesmo com tantas mudanças, José Tavares, o Zé Foguete, não perde a essência. Ele é um arquivo confidencial da brincadeira de boi e anuncia que qualquer dia desses vai contar a verdadeira história do boi, do tempo das lamparinas. Mas se eu disser a verdade, vou desbancar muito doutor, gente famosa que já escreveu até livro, brinca. Pai de dez filhos, Zé Foguete tem um acervo que guarda em sua casa para contar aos netos e bisnetos a história do Garantido. Um dos versos que ele canta pra recordar diz assim: Quando eu chegar no terreiro meu povo/ Preste atenção na toada rapaziada/ Solte a palma no chão, faz o silêncio/ Na roda levanta o guerreiro/ Não deixe o contrário aprender moda. Zé Foguete tem esse apelido por que veio de uma família de fogueteiros. Mas o que ele gostava mesmo, era de brincar boi. Zé começou no Garantido quando tinha 06 anos, no ano de 1933 e conta que a lamparina de gomo de bambu foi inventada por um homem conhecido por Chico Coveiro, que tinha esse nome por ter trabalhado no cemitério. Quando chegava 12 de junho, era tradição. A gente brincava pelas ruas na véspera da festa de Santo Antonio. As pessoas faziam até promessa para levar as lamparinas. Era aquele monte de gente comprando querozene para iluminar os terreiros. Todo mundo comprava a sua, ficava uma coisa linda. recorda. Ninguém dava nada pra ninguém. Nos bons tempos de boi, cada um fazia a sua fantasia, comprava calça branca e camisa vermelha. Hoje em dia o pessoal da batucada já brincou até de camaleão, todo mundo verde. Agora, se nesse ano eles colocarem um amarelo por causa da Copa, aí eu vou achar bonito, opina.
Alumia o terreiro Lioca, para o boi Caprichoso brincar, mestre Chico tira a língua, pra amanhã nós almoçar. É com grande emoção que antigos moradores da rua Getúlio Vargas lembram o mais famoso iluminador de terreiros. Seu nome era Williams Lima Xavier, carinhosamente chamado Lioca. Dona Cota, ou Maria do Nascimento Teixeira, hoje com 75 anos, viu Lioca crescer. Ela conta que ele tinha duas paixões. A primeira era rezar e freqüentar a igreja e a segunda, sair atrás do boi com a lamparina. Naquele tempo era tudo escuro, o boi saía da Cordovil. Quando a gente ouvia ao longe a palminha, podia contar que lá ia o Lioca. Ele era fanático pelo boi, fazia questão de iluminar os terreiros, conta. Dona Cota diz que todos ficaram tristes com a morte de Lioca. Ele faleceu vítima de afogamento. Para os antigos .... era uma vez a simples e alegre brincadeira do auto do boi-bumbá ao redor das fogueiras. Hoje Parintins vive um novo momento. São efeitos visuais nunca vistos, ou simplesmente milhares de velas candeias em movimento, conduzidas nas mãos de fiéis torcedores.