03/04/2005, Flávio de Oliveira, de Brasília-DF, é colaborador deste site
Outro dia um "caboco" me falou que o Festival Folclórico de Parintins "tava" ficando repetitivo demais. De fato, às vezes é possível fisgar repetitividade em alguma toada ou ritual ou alegoria. Inclusive lembro que já escrevi nesse espaço o que penso do assunto.
Um megaespetáculo com duração de seis horas por noite, em três noites seguidas, totalizando dezoito horas de apresentação, ano após ano, em décadas de bumbódromo, que não deixasse escapar sequer subitânea rebarba de rememoração, seria o máximo do máximo, seria, aliás, a própria perfeição.
O carnaval do Rio é considerado com justiça a maior manifestação de cultura popular no Brasil, logicamente que ao lado da Seleção Brasileira de Futebol e do Festival de Parintins. Do mesmo tope, só localizo no horizonte a grandiosa Festa do Peão de Boiadeiro, em Barretos-SP.
Durante décadas o sucesso do cortejo das escolas de samba e da apoteose dos bumbás fundamenta-se na capacidade de exprimir, a um só tempo, puras manifestações de folguedo juvenil, festa de rua e espetáculo teatral, entremeados com arte, ritmo e folclore extraordinários.
Somente a grande nação brasileira pode dar-se ao luxo de esbanjar para o mundo tanta riqueza e diversidade cultural.
Mas meu objetivo hoje é provocar reflexão acerca do paulatino empobrecimento artístico e folclórico do carnaval carioca causado por imposições de mercado e pelo bel-prazer da mídia televisiva.
Penso que o desfile das escolas de samba transformou-se num evento de larga escala patrocinado por cervejarias e poderes públicos. Perdeu enorme conteúdo em arte e folclore, pois a tradição dos morros largou a avenida e foi cantar noutra freguesia, de modo que a espontaneidade da festa de Momo estandardizou-se na Sapucaí. A Ilha do Folclore jamais deveria importar do Rio de Janeiro esse mau exemplo de evolução.
Uma breve pesquisa nos sambas de enredo da Escola de Samba Unidos de Viradouro revela que seus compositores agarram-se na expressão "eu vou" como se fosse bicho-preguiça no galho de embaúba. Quer ver, só?
Recolhi os seguintes versos, ano após ano, veja só: em 1998 --"É na magia do sonho que eu vou; em 1999 --"E com Anita eu vou, é Garibaldi, amor"; em 2000 --"Com a Viradouro eu vou, eu vou, eu vou"; em 2001 -- "Eu vou me acabar"; em 2002 --"Nesta ciranda é que eu vou"; em 2003 -- "Se um vento soprar eu vou"; e, por fim, em 2005 --"Na bossa da bateria eu vou".
Os compositores da Viradouro adquiriram velho hábito de juntar o pastel "amor" com o caldo de cana barbeiro "eu vou". Obviamente que a idéia é passar para o público a impressão de versos rimados, tipo assim, "eu sou... eu vou... amor...".
"Só pra contrariar", prossiga conferindo: em 1998 -- "Eurídice, o verdadeiro amor... mitologia do samba, amor... hoje o amor está no ar"; em1999 -- "E com Anita eu vou, é Garibaldi, amor"; em 2000 -- "O dia vai raiar, amor, amor... meu canto de amor se espalha no ar"; em 2001 -- "Mais amor no coração... e quem tem amor pra dar"; em 2002 -- "Nesta ciranda é que eu vou ... hoje eu quero paz, amor... e um mundo de felicidade"; em 2003 -- "A Viradouro, meu amor, faz a homenagem... amor, nessa avenida quanta emoção... deixa o dom me levar, amor... Piaf, um hino ao amor"; e, finalizando, em 2005 -- "Numa expressão de amor... iluminado eu sou, palhaço do amor... na bossa da bateria eu vou".
Tanto "evoluiu" o processo de criação que, nesse 2005, os poetas da Viradouro decidiram triturar gregos e romanos juntamente com Monalisa e Molière: "Na Grécia brinquei da maneira que quis/Em Roma fiz o povo mais feliz/Já fui contido e proibido/Como um vilão qualquer/Mas um sonho em mim se realiza/Desvendei em Monalisa/Os segredos de Molière".
Com base na melodia contida em cada verso, responda "verdadeiro" ou "falso": (a) A cidade onde foram desvendados os segredos de Molière chama-se Monalisa; (b) "Miolo de pote" é um prato típico da cozinha nortista, porém fartamente consumido em Niterói no Ristorante "Como um vilão qualquer".
Preocupado com a possibilidade de que a falta de criatividade artística possa migrar da quadra da aldeia dos Temiminós, hoje Niterói-RJ, para a Tupinambarana, rogo à Padroeira que finde logo esse flerte dos bumbás com as malas-artes do comércio inflacionado.
A recente troca das tradicionais datas 28, 29 e 30 de junho para fixá-la no último fim-de-semana daquele mês é um sinal evidente de que a mão grande do lucro sem peias e da esperteza eleitoreira está vencendo o cabo-de-guerra com a tradição e a autenticidade do folclore amazonense. Diz-se que "o mais fraco, quando não se acautela, segue arrastado pelo jugo do mais forte".
A complementação do Porto Fluvial de Parintins é obra marcante em Parintins, que certamente vai trazer mais condições para o desenvolvimento econômico regional. Afinal de contas, trata-se de uma prioridade do Governo Lula ("leia-se" Alfredo Nascimento). Porém, tenho impressão que alguns figurões desrespeitaram o público ao propor o descarte da data tradicional de realização da festa apenas para dar visibilidade à capitalização dos dividendos políticos da iniciativa federal.
Enfim, restando apenas sessenta dias para o Festival, sem nenhuma fumaça visível de trabalho nos galpões, eis o que gostaria de dizer: tomara que artistas e brincantes encarregados de montar o espetáculo do Caprichoso no bumbódromo, ainda tenham tempo de elaborar soluções artísticas reconhecidamente originais e, se for o caso, dispor da típica ousadia de recusar o prato pronto requentado de imagens e sonoridades do passado. Se os galpões azulantes conseguirem esse feito, o Caprichoso continuará ostentando em 2005, e sempre, o lema que lhe é mais característico, a meu ver: "Ousar, inovar".
Veja também este artigo, de Flávio de Oliveira: Estratégia Magalhães